Mapa da estrada da vida
Luiz Nogueira

Certa vez, a uma meia vida atrßs, alguΘm abriu um livro de astrologia na minha frente e me fez ler um trecho sobre as caracterφsticas das pessoas do meu signo, Virgem. Meio sem saco, tentando disfarτar a mß vontade, li a pßgina indicada s≤ pra nπo dar uma de boτal na frente dos amigos. AtΘ esse dia nunca tinha me preocupado muito com astrologia, e duvido que tivesse gasto mais do que um neur⌠nio e meio pra pensar sobre o assunto. Naturalmente, tudo o que tivesse a ver com astrologia estava arquivado em algum dep≤sito escuro e empoeirado da minha mente, dentro de um caixote carimbado com a palavra æBalela.Æ Afinal, quando se tem 18 anos existem tantas coisas tπo mais importantes e urgentes pra encher a nossa cabeτa que nπo dß pra ficar perdendo tempo com essas baboseiras.

Mas nπo Θ que, apesar do preconceito e da mß vontade, fui obrigado a admitir que o tal livro atΘ que falava umas coisas que, inegßvelmente, tinham a ver comigo? Meu cΘrebro se deu ao trabalho de deslocar alguns dos neur⌠nios que naquela hora estavam furiosamente ocupados com o tema "quem-vou-levar-pra-festa-sßbado?" para que eu pudesse matutar um pouco sobre esse fato novo. Minha cabeτa virou palco para um breve porΘm intenso debate: de um lado, o representante do PC (Partido da CoincidΩncia) tecia argumentos muito bem-elaborados a seu favor, encorajado pelo ilustre membro do PGO (Partido das Generalidades Obscuras); do outro lado, o pessoal do Partido da D·vida Esclarecida (PDE), e o franzino e solitßrio integrante do PACOS (Partido Astrologia Θ Coisa SΘria) fazendo tφmidos pedidos de aparte, sem atrair muita atenτπo. Presidindo os trabalhos, o nobre Senador P. Racional, atento ao comportamento de todos os participantes. A coisa toda deve ter durado uns 15 nanosegundos, terminando com uma vit≤ria esmagadora da coligaτπo PC/PGO. Minha conclusπo: a astrologia era uma coletΓnea de aspectos generalizados da personalidade humana, apresentados de uma forma tπo vaga e subjetiva que podiam ser aplicados a prßticamente qualquer pessoa. O fato de que ocasionalmente as interpretaτ⌡es pareciam estar corretas nπo passava de mera coincidΩncia.

Satisfeito comigo mesmo por ter encontrado uma explicaτπo confortßvelmente racional para esse enigma, nπo perdi mais tempo pensando no assunto. A astrologia voltou para aquele porπo escuro, onde permaneceu trancafiada por muitos e muitos anos, juntamente com outras æcharlatanicesÆ do gΩnero, como o I Ching, a quiromancia, o Tar⌠, etc.

Isso foi no final dos anos 70. A Terra teve que dar mais umas quinze voltas em torno do Sol antes que eu voltasse a esbarrar, inesperadamente, na astrologia. A essa altura do campeonato, o tempo e os acontecimentos jß tinham se ecarregado de minar as bases do pensamento cartesiano que sustentavam o arcabouτo do meu intelecto, uma estrutura que eu sempre achara s≤lida e inabalßvel, bonita de se ver, atΘ. Quando a astrologia surgiu no meu horizonte de experiΩncias, as inexpugnßveis muralhas do meu ceticismo jß tinham sofrido sΘrios abalos, e atΘ desmoronado em alguns lugares estratΘgicos, permitindo a invasπo de hordas de bruxos, xamπs, parapsic≤logos, iogues, e velhos sßbios orientais.

Aconteceu, entπo, que me vi cara a cara com uma astr≤loga profissional. Com base nos dados fornecidos por telefone (local, data e hora do nascimento), ela tinha feito um desenho cheio de linhas coloridas e simbolos misteriosos que empurrou pra debaixo do meu nariz dizendo tratar-se do meu mapa astral. Era como se estivessem me mostrando um manual de engenharia eletr⌠nica escrito em braille: nπo dava pra entender lhufas. Mas a moτa olhava para aquilo como se fosse uma foto colorida, cheia de detalhes minuciosos. "Olhaqui!" exclamava entusiasmada, apontando pra algum ponto no meio daquele emaranhado de linhas, "Tß vendo que interessante?" Eu nπo via nada, mas fingia que sim, pra nπo cortar o barato dela.

Desconfiado, fiquei tentando imaginar quem tinha contado pra ela todas aquelas coisas a meu respeito. Ou ela estava chutando aquilo tudo (e nesse caso, nπo seria mß idΘia pedir pra ela arriscar uns palpites na Sena), ou entπo ela tinha um talento detetivesco que faria o Sherlock Holmes parecer um reles principiante. Convencido de que ela podia deduzir um mundo de coisas atravΘs de cada um dos meus gestos ou palavras, tentei ficar o mais im≤vel e inexpressivo possφvel, pra nπo dar nenhuma pista. Cada vez que eu abria a boca me arrependia: "Pronto! Agora ela jß sabe que eu colava na prova de Matemßtica no Ginßsio!" eu pensava, aflito. "Daqui a pouco ela vai sacar que eu odeio os Beatles!"

Por todas as leis da L≤gica Cartesiana, da Probabilidade Estatφstica e do Cßlculo Diferencial (seja lß o que for isso), era totalmente impossφvel que uma pessoa descobrisse tudo aquilo baseada em tπo poucas informaτ⌡es. Nuvens carregadas de paran≤ia comeτaram a trovejar na minha cabeτa: se esssa mulher podia fazer isso com tπo pouco, imagine o que outras pesoas nπo fariam com todas as informaτ⌡es minhas espalhadas em fichas de locadora de vφdeo, cadastros de loja, credißrios, cheques (nπo falta muito para que mandem a gente colocar a impressπo digital e dar amostras de sangue e urina cada vez que passa um cheque) e registros bancßrios? Meu Deus, e se tiver algum astr≤logo na Receita Federal?!

Respirei aliviado ao ver que nem todas as conclus⌡es da astr≤loga correspondiam α realidade, que ainda tinha uns cantinhos onde podia malocar meus podres em seguranτa. Ainda bem!

No final da sessπo, impressionado e um tanto desconcertado, me despedi da astr≤loga como se fosse uma pessoa da famφlia: afinal, ela jß me conhecia melhor atΘ do que a minha mπe!

Depois disso, resolvi fazer uma faxina nos meus velhos preconceitos sobre astrologia, jogar fora o entulho de ignorΓncia e desinformaτπo que cobria esse assunto na minha cabeτa. Como a maioria das pessoas, sempre achei que a astrologia se limitava aos hor≤scopos bobocas que a gente vΩ nos jornais, com aquelas previs⌡es in≤cuas, quase tπo imprecisas quanto as da meteorologia. Pensar que a astrologia Θ s≤ isso, eu sei agora, Θ como ir ao cinema e s≤ ver o cartaz na entrada.

Tem gente que acredita tanto na astrologia que morre de medo dela. Sei de gente que nem sai de casa quando sabe que estß passando por um trΓnsito difφcil (trΓnsito em astrologia Θ o que acontece quando os planetas, que estπo sempre circulando por aφ, comeτam a trombar nos planetas estacionados no seu mapa natal, criando todo tipo de confusπo). Alguns ficam com a impressπo de que somos todos uns fantoches nas mπos implacßveis do Destino, que a qualquer momento pode resolver curtir com a nossa cara. Mas nπo Θ por aφ. Parece que todos n≤s somos equipados com um troτo chamado ælivre arbφtrioÆ que faz com que tenhamos o direito de escolher o rumo que vamos dar α nossa vida.

O mapa astral, como um mapa rodovißrio comum, te mostra o caminho que vocΩ deve percorrer nessa vida, com todos os obstßculos e desvios que podem aparecer. AtΘ aφ, tudo bem. O problema Θ que esse mapa foi desenhado com tinta invisφvel e escrito numa lφngua esquecida, que s≤ pode ser decifrada por uns poucos iniciados, e mesmo esses peritos estπo sempre αs turras sobre divergΩncias de interpretaτπo. ╔ por isso que existem tantas linhas diferentes na astrologia: Linear, Transpessoal, Cientφfica, Cßrmica, Hindu, ┴rabe, enfim, tem dos mais variados formatos e sabores, a gosto do freguΩs.

Como uma espΘcie de æBomBril C≤smicoÆ, a astrologia tem 1001 utilidades. De repente vocΩ s≤ quer saber se vai arranjar namorado(a), ou se vai conseguir aquele emprego, ou se o Botafogo vai ser campeπo este ano. Tudo bem, a astrologia atΘ pode te dar respostas pra esse tipo de pergunta, se Θ o que realmente te preocupa. Pessoalmente, prefiro ver a astrologia como uma espΘcie de psicologia, um instrumento que pode ajudar as pessoas a se conhecerem melhor e a entenderem a natureza de seus relacionamentos com os demais. Melhor do que encher a cara de Prozac, ou passar 20 anos pagando ao analista pra ficar interpretando os teus lapsos verbais. ╔ claro que a astrologia nπo tem todas as respostas, mas se vocΩ souber usß-la vai te ajudar bastante.

O que Θ que eu ganho pra ficar enchendo a bola da astrologia? Nada. Nem astr≤logo eu sou. Mas acho que viajar pela estrada da vida αs cegas, no escuro e com os far≤is apagados nπo tem nada a ver. De vez em quando dou uma olhada no meu mapa, s≤ pra ver se nπo errei o caminho no ·ltimo cruzamento, ou se devo reduzir a velocidade porque tem um trecho perigoso logo adiante.


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