Menino do Mar
JosΘ Mßrcio Penido

Nπo se nasce impunemente em Minas Gerais. O abraτo das montanhas e' caloroso mas, vai indo, asfixia. Aφ dß aquela vontade de partir para a amplidπo verdeazul mostrada pelas revistas e o cinema. O senhor mar, para onde certamente corriam todas as ßguas que me cercavam. Eram muitas. Nasci numa estΓncia d e ßguas minerais. Um fartura de fontes: ßgua fΘrrea, magnesiana, sulfurosa... Tinha tambΘm uns corguins...

Menino ainda, mudamo-nos de Cambuquira para uma fabulosa metr≤pole, tambΘm rodeada de montanhas e com sua cota de hectolitros espremida numa represa chamada Pampulha. Uma fartura de belos horizontes, mas,em matΘria de ßguas, pobreza: um ribeirπozinho algo infecto, de nome Arrudas, e as piscinas de um monte de clubes. Muito cloro para uma alma sedenta de sal e aprisionada num cinturπo de cordilheiras.

Jß crescidinho, formado, chegada enfim era a hora de mergulhar nas nada pacφficas ondas do AtlΓntico. Mas eis que um telegrama azul (usava-se passar telegrama, e os urgentes eram desta cor) convidava o destinatßrio para trabalhar num jornal. Remetente: Sπo Paulo. Ah que bom, um emprego - mas αs margens do Rio TietΩ! A 420 quil⌠metros da princesinha do mar! Que lonjura, si⌠!

Mas serß temporßrio, pensava o nΘo-contratado no possante b≤lido da Viaτπo Cometa que o levou das Alterosas para a PaulicΘia. Ganho um dinheirinho, faτo um pΘ-de-meia e depois... sol, sal, sul! Me aguarde, Cristo Redentor. Nπo ouse fechar os braτos para este mineirinho que tirita de frio nas noites paulistanas e, de madrugada, depois do expediente, senta-se num barzinho, bebe todas e chora tietΩs de saudades dos amores e amigos que ficaram nas Gerais.

Temporßrio, vφrgula. Foram 22 anos de Sπo Paulo. Nos primeiros tempos, odiei a cidade. Caminhava cabisbaixo pelas ruas, nπo querendo sequer fitar os desconhecidos com quem cruzava, os desconhecidos que povoavam apartamentos e escrit≤rios, os desconhecidos que nao queriam saber do ·ltimo desconhecido que acabava de chegar.

Mas aφ um dia tive um flerte. E uma janelinha da cidade tornou-se familiar. Outro dia, ganhei um amigo. E nova luz num prΘdio qualquer se fez farol. E a dona da mercearia anunciou: chegou aquela fruta que o senhor gosta. E o garτon enfim perguntou: o de sempre? Alguns colegas se tornaram amigos. E da multidπo de an⌠nimos brotavam, vicejavam e feneciam amores. E os edifφcios passaram a ter hist≤ria, e as esquinas a relembrar casos. Nesta igreja batizei uma afilhada, naquela rezei por um amigo mal ganho e jß perdido, aquφ tomei um porre, e alφ fumei meu primeiro unzinho... e fiz revistas, e fiz jornais, e programas de televisπo, e fiquei de bobeira. Astros e estrelas, de carne e osso, ao vivo aplaudi, de pΘ, na platΘia. Um ou outra, deitado, afaguei, lado a lado.

Ai de quem falasse mal de Sπo Paulo perto de mim! Consumada estava a paixπo.

Mas e o mar, cadΩ meu mar? Meu Cristinho Redentor, esqueceu-se de mim? Serß que nunca mais vai chegar um telegrama azul? Um fax que seja, jß que outros sπo os tempos?

Pois nπo Θ que toca o velho e santo telefone? Quer vir trabalhar no Rio?

Querer eu quero, mas o que faτo da minha casa, das minhas coisas, como viver sem meus amigos, sem a familiaridade com esses bairros e caminhos, essa Sπo Paulo de tantos cantos, encantos e recantos? Que que eu faco dessa metade da minha vida?

Ora essa, guardo na metade do coraτπo e abro a outra para esta cidade a que chego no dia da abertura da Copa do Mundo, 10 de junho de 1990. Largo minha tralha no quarto do apart-hotel e vou ver o mar.

╘ meu querido, cß estou, lembra-se de mim? Sou o Marcinho lß das Gerais, o Zezinho de Sπo Paulo, o vizinho que vocΩ acaba de ganhar. Eis-me aqui, tantos anos depois do sonho, cabelos felizmente ainda fartos mas jß prateados, corpo e alma de quem muito amou e muito foi amado - graτas a Deus. Nπo tenho mais tipo nem idade para ser um menino do Rio. Mas deixa, meu velho, deixa eu ser o novo menino do mar?

Mergulhei, ele me envolveu com seu abraτo ensopado. Emergi e... me considerei aprovado. Mais: apaixonado. Nπo sei se a recφproca Θ verdadeira - mas isso nπo tem importΓncia. Nas quatro estaτ⌡es do ano (no Rio, na verdade, sπo duas: verπo e calor), manhπ, tarde, noite, madrugada.... Cada hora ele estß de um jeito: sereno, prateado bravo, cinzentπo, azulzim, esmeraldo, dourado, clean, poluφdo, apinhado, deserto... Nπo tem a menor personalidade!

└s vezes, senhoril, permito que ele beije tπo apenas meus pΘs. Outras, ofereτo-lhe a mπo: lavo meu anelzinho de prata e esfrego areia molhada para dar brilho. Certas madrugadas, caminho rente a ele e alma adentro, pensando numa enormidade de problemas. Diante de tamanha imensidπo,turbilh⌡es d'alma, conflitos existenciais profunderΘrrimos - tudo vira marola! Grandeza suprema, o mar apequena a mania de grandeza da dor.

No verπo, fim-de-semana, acampo na praia da manhπ α noite, com direito a cadeira, jornal, amigos, kids, biscoito de polvilho (salgado), Guaraplus, suco de laranja com cenoura, cervejinha e, mais que essa gula toda, olhos devorando gl·teos, coxas, caras, bocas, peitos, protuberΓncias, reentrΓncias - ai meu Santo Cristo, quπo dificil ser casto entre tantos corpos seminus desaforadamente oferecidos!

O cΘu Θ testemunha de que nπo Θ mole ganhar um deles. Mas o mar, esse safado, a todos beija, lambe, ensopa, engole. E depois, desprendido, α areia devolve, por minutos saciado, para sempre insacißvel.

└s vezes calha de eu estar dentro d'ßgua, o sol na cabeτa e ao longe, lß em cima, vejo o Cristo em seu trono de rocha no Corcovado. Faτo uma prece muda e molhada de agradecimento e, bem baixinho, s≤ para ele ouvir, murmuro:

- Trem bπo, si⌠!


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