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Nπo se nasce impunemente em Minas Gerais. O abraτo das montanhas e'
caloroso mas, vai indo, asfixia. Aφ dß aquela vontade de partir para a
amplidπo verdeazul mostrada pelas revistas e o cinema. O senhor mar, para
onde certamente corriam todas as ßguas que me cercavam. Eram muitas. Nasci
numa estΓncia d e ßguas minerais. Um fartura de fontes: ßgua fΘrrea, magnesiana,
sulfurosa... Tinha tambΘm uns corguins...
Menino ainda, mudamo-nos de Cambuquira para uma fabulosa metr≤pole,
tambΘm rodeada de montanhas e com sua cota de hectolitros espremida numa
represa chamada Pampulha. Uma fartura de belos horizontes, mas,em matΘria
de ßguas, pobreza: um ribeirπozinho algo infecto, de nome Arrudas, e as
piscinas de um monte de clubes. Muito cloro para uma alma sedenta de sal
e aprisionada num cinturπo de cordilheiras.
Jß crescidinho, formado, chegada enfim era a hora de mergulhar nas
nada pacφficas ondas do AtlΓntico. Mas eis que um telegrama azul (usava-se
passar telegrama, e os urgentes eram desta cor) convidava o destinatßrio
para trabalhar num jornal. Remetente: Sπo Paulo. Ah que bom, um emprego
- mas αs margens do Rio TietΩ! A 420 quil⌠metros da princesinha do mar!
Que lonjura, si⌠!
Mas serß temporßrio, pensava o nΘo-contratado no possante b≤lido da
Viaτπo Cometa que o levou das Alterosas para a PaulicΘia. Ganho um dinheirinho,
faτo um pΘ-de-meia e depois... sol, sal, sul! Me aguarde, Cristo Redentor.
Nπo ouse fechar os braτos para este mineirinho que tirita de frio nas noites
paulistanas e, de madrugada, depois do expediente, senta-se num barzinho,
bebe todas e chora tietΩs de saudades dos amores e amigos que ficaram nas
Gerais.
Temporßrio, vφrgula. Foram 22 anos de Sπo Paulo. Nos primeiros tempos,
odiei a cidade. Caminhava cabisbaixo pelas ruas, nπo querendo sequer fitar
os desconhecidos com quem cruzava, os desconhecidos que povoavam apartamentos
e escrit≤rios, os desconhecidos que nao queriam saber do ·ltimo desconhecido
que acabava de chegar.
Mas aφ um dia tive um flerte. E uma janelinha da cidade tornou-se familiar.
Outro dia, ganhei um amigo. E nova luz num prΘdio qualquer se fez farol.
E a dona da mercearia anunciou: chegou aquela fruta que o senhor gosta.
E o garτon enfim perguntou: o de sempre? Alguns colegas se tornaram amigos.
E da multidπo de an⌠nimos brotavam, vicejavam e feneciam amores. E os edifφcios
passaram a ter hist≤ria, e as esquinas a relembrar casos. Nesta igreja
batizei uma afilhada, naquela rezei por um amigo mal ganho e jß perdido,
aquφ tomei um porre, e alφ fumei meu primeiro unzinho... e fiz revistas,
e fiz jornais, e programas de televisπo, e fiquei de bobeira. Astros e
estrelas, de carne e osso, ao vivo aplaudi, de pΘ, na platΘia. Um ou outra,
deitado, afaguei, lado a lado.
Ai de quem falasse mal de Sπo Paulo perto de mim! Consumada estava
a paixπo.
Mas e o mar, cadΩ meu mar? Meu Cristinho Redentor, esqueceu-se de mim?
Serß que nunca mais vai chegar um telegrama azul? Um fax que seja, jß que
outros sπo os tempos?
Pois nπo Θ que toca o velho e santo telefone? Quer vir trabalhar no
Rio?
Querer eu quero, mas o que faτo da minha casa, das minhas coisas, como
viver sem meus amigos, sem a familiaridade com esses bairros e caminhos,
essa Sπo Paulo de tantos cantos, encantos e recantos? Que que eu faco dessa
metade da minha vida?
Ora essa, guardo na metade do coraτπo e abro a outra para esta cidade
a que chego no dia da abertura da Copa do Mundo, 10 de junho de 1990. Largo
minha tralha no quarto do apart-hotel e vou ver o mar.
╘ meu querido, cß estou, lembra-se de mim? Sou o Marcinho lß das Gerais,
o Zezinho de Sπo Paulo, o vizinho que vocΩ acaba de ganhar. Eis-me aqui,
tantos anos depois do sonho, cabelos felizmente ainda fartos mas jß prateados,
corpo e alma de quem muito amou e muito foi amado - graτas a Deus. Nπo
tenho mais tipo nem idade para ser um menino do Rio. Mas deixa, meu velho,
deixa eu ser o novo menino do mar?
Mergulhei, ele me envolveu com seu abraτo ensopado. Emergi e... me
considerei aprovado. Mais: apaixonado. Nπo sei se a recφproca Θ verdadeira
- mas isso nπo tem importΓncia. Nas quatro estaτ⌡es do ano (no Rio, na
verdade, sπo duas: verπo e calor), manhπ, tarde, noite, madrugada.... Cada
hora ele estß de um jeito: sereno, prateado bravo, cinzentπo, azulzim,
esmeraldo, dourado, clean, poluφdo, apinhado, deserto... Nπo tem a menor
personalidade!
└s vezes, senhoril, permito que ele beije tπo apenas meus pΘs. Outras,
ofereτo-lhe a mπo: lavo meu anelzinho de prata e esfrego areia molhada
para dar brilho. Certas madrugadas, caminho rente a ele e alma adentro,
pensando numa enormidade de problemas. Diante de tamanha imensidπo,turbilh⌡es
d'alma, conflitos existenciais profunderΘrrimos - tudo vira marola! Grandeza
suprema, o mar apequena a mania de grandeza da dor.
No verπo, fim-de-semana, acampo na praia da manhπ α noite, com direito
a cadeira, jornal, amigos, kids, biscoito de polvilho (salgado), Guaraplus,
suco de laranja com cenoura, cervejinha e, mais que essa gula toda, olhos
devorando gl·teos, coxas, caras, bocas, peitos, protuberΓncias, reentrΓncias
- ai meu Santo Cristo, quπo dificil ser casto entre tantos corpos seminus
desaforadamente oferecidos!
O cΘu Θ testemunha de que nπo Θ mole ganhar um deles. Mas o mar, esse
safado, a todos beija, lambe, ensopa, engole. E depois, desprendido, α
areia devolve, por minutos saciado, para sempre insacißvel.
└s vezes calha de eu estar dentro d'ßgua, o sol na cabeτa e ao longe,
lß em cima, vejo o Cristo em seu trono de rocha no Corcovado. Faτo uma
prece muda e molhada de agradecimento e, bem baixinho, s≤ para ele ouvir,
murmuro:
- Trem bπo, si⌠!
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